quinta-feira, 30 de abril de 2020

“Bolsonaro Riding Covid19 Down” e o Macarthismo Bolsonarista


Acordei com a capa do Le Monde Diplomatique da edição 154, de Maio de 2020, na minha timeline no Facebook. A ilustração de Vitor Flynn capta de forma cirúrgica a estruturação da necropolitica do Presidente brasileiro e o contexto ideológico reacionário que o sustenta.
A ilustração é baseada na emblemática cena do filme Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb), de 1964, clássico dirigido pelo genial Stanley Kubrick. Essa comédia, listada como uma das mais engraçadas do cinema estadunidense, satiriza a Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética, o período de instabilidade política entre as duas nações iniciadas após a doutrina Truman em 1947 e que só foi terminar com a dissolução da União Soviética em 1991. No filme são mostradas as diversas “neuroses” que o senso comum da população americana criava em relação à União Soviética, como envenenamento das estações de distribuição de água no intuito de profanar/intoxicar o corpo sagrado americano, e a criação de uma “doomsday machine” capaz de destruir o mundo ao apertar de um botão.
Major T.J. “King” Kong montando uma bomba nuclear no filme Dr. Fantástico, de Kubrick, 1964

Entre diversas caricaturas de símbolos americanos, a cena do personagem Major T. J. “King” Kong (sim, o nome subverte a representação da selvageria antiamericana do símio das terras tropicais selvagens em troca de uma imagem de imponência da brutalidade, violência, exaltação gratuita de símbolos ditos da masculinidade americana, ou seja, uma selvageria inaceitável pela aceitável) montando uma bomba atômica em direção a uma base soviética, enquanto movimenta o chapéu como um cowboy. Vale trazer aqui a representação do cowboy como o herói estadunidense, desbravador das terras do oeste, justiceiro moral, matador de “selvagens”, aqui avançando em uma última empreitada contra os novos inimigos “obscuros”, “imorais”, “selvagens”. Ao final, no entanto, de nada vale sua investida, uma vez que, em um plot twist (propositalmente previsível) o Dr. Fantástico, cientista alemão ao lado do Presidente americano, se revela um líder nazista e ativa a doomsday machine.
Na releitura do Vitor, a metáfora se torna clara. O COVID19 como a nova “ameaça comunista da China para domínio mundial” — como estabelecida pelas muito difundidas teorias da conspiração e endossadas, inclusive, por muitos membros do governo — é montado de forma heróica e orgulhosa pelo maior símbolo de violência, da barbaridade e da brutalidade no país (sem citar a utilização de um símbolo que emana o “americanismo”), o Presidente. O vírus aqui carrega a perversidade de uma arma nuclear, mas não apenas de forma simples e literal, pela destruição generalizada. O vírus será tratado aqui como uma justificativa política para um plano perverso necropolítico, a emancipação o Presidente da responsabilidade enquanto estabelece um plano de favorecimento de uma elite. Abaixo dele vemos o resultado: o país deserto, com as covas prontas para receber a população — que no momento que estou escrevendo, já ultrapassou 5.000 óbitos decorrentes da pandemia.
Vemos aqui a representação da política de genocídio em nome de um perverso “símbolo patriótico”, das ditas “liberdades individuais”, do “direito à/da propriedade”, da manutenção da economia, do crescimento, do sacrifício à divindade mercado. As hipocrisias são constitutivas dessa visão.
Bolsonaro montando o COVID19 na capa da Edição 154, de maio de 2020 (link de acesso: https://diplomatique.org.br/edicao/edicao-154/)

A sustentação dessa imagem heróica, associada a um macarthismo descarado, ajuda a adestrar uma parte da população, que continua apoiando cada vez mais uma política mascarada de populismo mas que tem como intuito agradar uma elite, exploradora, capitalista — que, diga-se de passagem, não será a principal afetada nessa guerra. Em vez de ações de fortalecimento dos setores do Sistema Único de Saúde e a Ciência Brasileira, o Presidente brasileiro fortifica sua imagem de líder com as ideias condutoras de salvador da pátria e de um inimigo externo a ser combatido. Tal postura tem como resultado a unificação da sua massa de apoiadores em uma postura neurótica, ofensiva e intolerante. Aqui a história se repete.
Cartaz “Is this America under communism”, propaganda anticomunista do governo estadunidense cativando a idéia de caos e destruição dos valores nacionais americanos

Nesse cenário, o Presidente tem um solo propício para sucateamento dos órgãos públicos e destruição gradual das instituições democráticas do país. O processo descrito tem um mecanismo simples de duas etapas: 1 — o incentivo das ligações libidinais e a invocação do espírito narcisista da própria massa de adeptos do bolsonarismo e reinvidicação de ideais de moralidade, honestidade e justiça; 2 — instigar a antipatia para a oposição, heterogênea, formada pela esquerda política, mídia, progressistas, sindicatos, etc, sob a denominação de “comunista”. A palavra “comunista” aqui é totalmente deslocada de seu sentido real e exerce uma figura no imaginário político da sociedade brasileira da mesma maneira que demônio exerce no imaginário religioso. A alta cúpula do executivo, portanto, se mantém com uma base média de um terço da população que parece viver num culto cego ao líder o isentando de toda culpa e responsabilidade de seus atos; culpando qualquer falha de seu governo na oposição ou em elos não tão próximos do presidentes; vangloriam suas supostas qualidades acima de todas num patamar quase messiânico.
Chamada de matéria do Estadão de 15 de março de 2020 com termo depois apropriado pelo Chanceler Ernesto Araújo (link: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,quem-tem-medo-do-comunavirus-gritam-bolsonaristas-em-ato-na-avenida-paulista,70003233965)

Enquanto isso, produto final dessa prática se desenrola em uma crise caótica, política e sanitária, com fins trágicos nos próximos capítulos. O nosso papel se torna passivo, de um espectador, como descrito em outra matéria da mesma Edição 154 da Revista: somos “Todos crianças”.
Por Lucas Greenhalgh, estudante de Farmácia pela UFRJ, e Hugo Vaz, estudante de Psicologia pela UFRJ

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